1. Uma pandemia não é uma coleção de vírus, mas sim uma relação social entre pessoas, mediada por vírus.
Nada é inevitável, imprescindível ou imutável na pandemia de coronavírus que se desenvolve em todos os lugares à nossa volta, simplesmente porque a pandemia é social. As intermináveis mensagens e anúncios que nos pedem para ajudar a “achatar a curva” são pelo menos suficientes para deixar claro que as consequências históricas e os custos humanos da pandemia dependem inteiramente das maneiras que escolhemos viver em relação a ela. Como a pandemia não é algo que simplesmente acontece conosco, mas sim algo do qual participamos, um primeiro passo à frente nesses tempos é recusar restringir nosso pensamento sobre como cada uma de nossas vidas individuais pode ser particularmente afetada pelo vírus e começar a contemplar o potencial que compartilhamos coletivamente para mudar o curso da pandemia e também para moldar a nova sociedade que emerge dela.
2. No mínimo, a crescente suspensão de normas e leis sociais, econômicas e políticas oferece a cada um de nós uma oportunidade única de questionar o mundo pré-pandêmico com o qual todos estávamos acostumados a viver.
Qual é o valor do trabalho? Como podemos alocar recursos de maneira diferente se não precisarmos considerar o preço? A saúde privatizada é defensável? As prisões são realmente necessárias? Ao testemunharmos o cancelamento de pagamentos de serviços públicos, hipotecas e aluguéis, a aquisição pública de sistemas de saúde privados, a cessação de prisões por crimes de baixo nível e os pedidos de cancelamento de todas as dívidas, o que mais poderíamos colocar em questão e, talvez mais importante, imaginar tomar o lugar deles? Se os que estão no poder estão tão dispostos a violar normas e leis sociais, econômicas e políticas, no interesse de defender o mundo que controlam, então devemos estar igualmente dispostos a modificá-las e espalhar a imaginação de algo diferente. Nesse curto espaço de tempo, já podemos ver que a única coisa verdadeiramente certa na pandemia é que nada mais será o mesmo.
3. Como os estados-nação se mostram indispostos e/ou incapazes de sustentar a vida, nossa prioridade imediata e urgente deve ser a de organizar ajuda mútua, solidariedade e cuidado, usando os meios necessários.
Realmente não demorou muito tempo para surgirem os espectros do darwinismo pandêmico e do malthusianismo viral, encontrando apoio em políticos de todo o mundo que dizem a seus cidadãos que estão por si sós. Se o Estado e a economia de mercado se mostram incapazes de fornecer as diversas formas de cuidado das quais toda a vida depende, devemos encontrar maneiras de prestar esse cuidado sem se preocupar com quem é o dono ou se é legal. Nesse sentido, a luta para defender a vida na pandemia, às vezes, necessariamente toma forma de uma luta direta contra a lógica do capital, a violência da lei e a abstração do preço. Devemos aprender sobre nossas próprias necessidades e as necessidades daqueles de quem somos capazes de cuidar, encontrar maneiras de produzir, expropriar e distribuir bens que satisfaçam as necessidades das comunidades interconectadas e interdependentes e estarmos dispostos a simplesmente tomar aquilo que for necessário sempre que nos for negado.
4. Como as economias de mercado do capitalismo fracassam a nós em todos os aspectos, devemos ousar imaginar maneiras de organizar a vida social além da lógica do preço, da concorrência e do lucro.
Organizar uma sociedade baseada em satisfazer as necessidades de todos, em vez de defender a riqueza de poucos, não é simplesmente um ideal na pandemia, mas uma necessidade prática e popular. À medida que esse novo senso comum continue a proliferar e se firmar, precisamos começar a reorganizar materialmente a sociedade nessa base, garantindo que as pessoas obtenham o que precisam primeiro e nunca se preocupando com o lucro. Quaisquer novas práticas de cuidado que surgirem serão imediatamente desafiadas pelo poder logístico e de infra-estrutura do capitalismo digital, que já está aproveitando a pandemia como um meio de conquistar e articular o que resta de uma economia global em colapso. Se a Amazon, que já contrata milhares de novos trabalhadores para acompanhar a demanda vertiginosa, se torna o meio em que as pessoas confiam para sobreviver à pandemia, então nosso mundo pós-pandemia se tornará cada vez mais indistinguível da exploração, desigualdade e precariedade que hoje definem o modelo organizacional da Amazon. Resumidamente, se não conseguirmos quebrar a lógica da oferta e demanda impulsionada pelo mercado, do preço e do lucro, isso pode acabar simplesmente nos quebrando.
5. Nossas redes de cuidado e solidariedade necessariamente devem começar pelas especificidades e imediatidades das situações em que vivemos, mas rapidamente devem multiplicar seus vínculos com comunidades difusas e diversas.
Nenhuma vida vive verdadeiramente sozinha, e nenhum ato de individuação ou privação pode alterar o fato de que toda vida depende constitutivamente de inúmeras outras vidas. Como tal, cuidar verdadeiramente de nós mesmos e daqueles com quem compartilhamos laços íntimos exige efetivamente a assistência para todos. Nos próximos meses, devemos praticar de maneira inventiva e imaginativa o distanciamento social de forma que cultivem e proliferem, e não diminuam, a solidariedade social. Se devemos começar na prática organizando o atendimento àqueles que já são próximos e íntimos – nós mesmos, nossas famílias, amigos, vizinhos e entes queridos – então parte desse esforço implica em expandir continuamente a organização e a coordenação do atendimento em qualquer escala a todos que necessitarem. Esses modos de cuidado inclusivo e aberto devem escapar da lógica do Estado e do mercado, constituindo-se com base nas diversas precaridades e interdependências.
6. Cuidar e agir em solidariedade uns com os outros dentro e fora da pandemia exigirá a constituição e defesa de novas formas de comunidades.
Enquanto lutamos para organizar os cuidados, o capitalismo pode muito bem confiar em toda a nossa compaixão e solidariedade para sobreviver à pandemia antes de retornar com força total e mergulhar todos nós em estados de precariedade ainda mais intensos, em formas de trabalho ainda mais indiferentes e em dívidas ainda mais profundas. Embora essas novas formas dependam das maneiras pelas quais somos capazes de agir em solidariedade uns com os outros, praticando bondade, generosidade, compaixão e coragem, se essas solidariedades não forem constituídas em novos tipos de comunidades que tornem obsoletos o capitalismo e o Estado, elas não serão capazes de suportar as exigências da pandemia nem resistir a medidas inevitáveis destinadas a conquistar e capturar o que se segue à pandemia. Em outras palavras, se nossa capacidade de cuidar um do outro falha em ser assentada em formas qualitativamente diferentes, elas podem muito bem ser reintegradas em novas expressões de privação, desapropriação e precaritização em quaisquer novos sistemas jurídicos e econômicos que possam tentar estabelecer a si mesmos.
7. Cuidar um do outro envolverá igualmente oposição e luta contra aqueles que pretendem fortalecer as formas de dominação já existentes nas turbulências e incertezas da pandemia.
Enquanto os trabalhadores do hospital ainda lutam para obter equipamento de proteção suficiente, novas imagens já circulam de agentes de imigração equipados com novas máscaras respiratórias que prendem migrantes sem documentos. As xenofobias são ampliadas, os programas de assistência social são cortados e empresas assinam novos contratos com o Estado para implementar tecnologias de reconhecimento facial e rastreamento de celulares. Não devemos subestimar as novas crueldades que podem surgir nestes tempos, atacando comunidades que já não podem mais se defender ou protestar nas ruas, muito menos se reunirem. Que novos tipos de solidariedade e luta poderíamos inventar para combater as novas intensidades, práticas e violências que certamente surgirão? Como podemos manter distâncias um dos outros e ainda assim encontrar maneiras de agir de forma decisiva e coordenada em conjunto?
8. A pandemia, sendo um fenômeno que afeta diferentemente todo o planeta de uma só vez, deve forçar todos nós a viver nossas vidas além da lógica das fronteiras e nações.
As autoridades de saúde observaram há muito tempo que os vírus não respeitam fronteiras. Nós também não devemos. Muito do que atualmente ameaça nossas vidas – mudança climática, capital financeiro, pandemia de coronavírus – agora é expresso em escala planetária. Temos pouca esperança de defender a vida em qualquer lugar se formos incapazes de agir em conjunto com a vida em todos os lugares, reconhecendo a dignidade que é comum a toda a vida, por um lado, e as desigualdades materiais que continuam a impactar de maneira diferente a forma como a vida é vivida, no outro. A violência da pandemia será expressa de maneira diferenciada, em diferentes intensidades e de formas diferentes em corpos historicamente diferenciados, e nossos modos de viver e de organizar não apenas terão que dar conta disso, mas terão que se organizar exatamente nesses termos. Defender a vida na cidade de Nova York significará algo diferente de defendê-la na Cidade do México, Ramallah ou Hong Kong, mas essas lutas devem encontrar maneiras de ressoar e reverberar entre si através das fronteiras, continentes e oceanos, assim como o capital e as pandemias são capazes.
9. Como a vida na pandemia é do jeito que é, a vida na pandemia não permanecerá do jeito que é.
A pandemia é um processo histórico mundial, deixando nada na Terra inalterado e agindo como uma “dobra temporal” entre um planeta antes/depois. Embora não possamos mudar o que aconteceu antes da pandemia, devemos aprender com o passado como um meio de dar vida, sustentar e defender a possibilidade de futuros diferentes. Diversas histórias de luta contra várias formas de opressão e dominação devem informar as maneiras pelas quais nós mesmos continuamos lutando, mesmo que as novas lutas que surjam no presente pandêmico não possam se assemelhar formalmente às maneiras de lutar com as quais estamos acostumados. O passado nunca é resolvido e todos os eventos passados sempre podem significar algo novo nas maneiras como aprendemos e nos baseamos neles. Nesse sentido, como as lutas do passado contra o sexismo, o racismo, o fascismo e o capitalismo podem informar as lutas da pandemia? A resistência é, até certo ponto, sempre um esforço fundamentalmente especulativo, uma aposta coletiva de que algo pode ser possível antes que essa possibilidade seja realizada. Agora é a hora da imaginação, invenção e experimentação, aproveitando cada uma delas como um meio de produzir novos tipos de conhecimento sobre nossa situação e novos modos de luta dentro dela.
10. Devemos coletivamente, com coragem e compaixão, decidir que novas maneiras de viver queremos na pandemia e nos tempos que se seguem, ou então será decidido para nós.
As maneiras pelas quais a vida humana está atualmente ameaçada em escala planetária devem levar todos a considerar não apenas o valor genérico da vida, mas também o valor de formas distintas de vida e modos de vida. O valor da vida em resumo faz pouco para ajudar a informar as maneiras pelas quais podemos escolher viver nossas próprias vidas, enquanto imaginar e sonhar com que tipo de vida vale a pena viver pode esclarecer tudo. A pandemia oferece a todos a oportunidade de participar de um tipo de experiência estética crítica, permitindo não apenas ver as vidas como elas são, mas também ver como as vidas passaram a ser vividas de uma maneira específica e, assim, como as vidas poderiam viver de outra maneira. Levar a sério essa oportunidade requer nada menos que um abandono total de tudo o que governou e organizou nossas vidas até este ponto. Somente então seremos capazes de iniciar o processo interminável de aprender a viver, pensar, cuidar, agir, amar, lutar e construir novas vidas e modos de viver juntos além da lógica da pandemia e do mundo que a precedeu.
por Ian Alan Paul (https://www.ianalanpaul.com/ten-premises-for-a-pandemic/)
traduzido livremente