Skip to content

território_livre

anarquia \ geografia \ cyberpunk \ synth

  • anarquia
  • geografia
  • cyberpunk
  • synth_wave
  • sobre

Tag: pandemia

tradução_ A linha de frente da luta contra o capitalismo de plataforma está em São Paulo

Posted on 05/10/20 - 05/10/20 by jlxtl

Notas:

_ por Callum Cant – twitter: @CallumCant1
_ publicado em 03/10/2020 por Novara Media em https://novaramedia.com/2020/10/03/the-frontline-of-the-struggle-against-platform-capitalism-lies-in-sao-paulo/
_ traduzido livremente

 

A linha de frente da luta de classes no capitalismo de plataforma está agora em São Paulo. Mais precisamente, encontra-se no ponto exato onde a Ponte Estaiada atravessa o Rio Pinheiros, que divide a zona sudoeste da cidade. Foi lá, em 1º de julho de 2020, que milhares de motoboys da cidade montaram um bloqueio como parte da maior greve de aplicativos de plataforma de entrega de comida da história.

Foto: Amanda Perobelli/Reuters – Design: Bronte Dow

 

São Paulo é uma extensa megacidade com mais de 12 milhões de pessoas, a maior do hemisfério ocidental. Em 2013, tinha dez bilionários residentes – mas para o resto da população da cidade, a vida parece muito diferente. Para os muitos residentes de favelas e cortiços de São Paulo, uma combinação de pobreza, superlotação e colapso do bem-estar social está intensificando os impactos da pandemia. À medida que a taxa de desemprego na cidade aumenta para 12%, mais e mais pessoas têm sido empurradas para fora do emprego, inflando o excedente urbano populacional.

É exatamente a partir desse excedente que as plataformas recrutam a maior parte de sua força de trabalho. Milhares de novos desempregados tornaram-se motoboys. Muitas vezes sujeitos ao preconceito racial no mercado de trabalho e vivendo em condições precárias nas margens da cidade, essa força de trabalho periférica viaja para o centro todos os dias para trabalhar em plataformas de entrega de comida como iFood, Uber Eats, Loggi, Rappi e 99 Food em estradas perigosas por menos de U$ 2 por hora.

O aumento no número de pessoas que trabalham para as plataformas significa que mais trabalhadores estão competindo pelo mesmo número de entregas. Com as plataformas dominantes pagando pelo número de entregas concluídas – ao invés do número de horas trabalhadas – o aumento da competição entre os trabalhadores significou um massivo corte na renda desses. É uma história que tem se repetido inúmeras vezes no capitalismo de plataforma e, como sempre, conflitos logo surgiram.

A greve de julho foi desencadeada por uma forma muito contemporânea de luta: um vídeo de selfie, transmitido de entregador para entregador pelo WhatsApp. Um motoboy conhecido como Galo filmou a si mesmo expressando os problemas enfrentados pelos motoboys. Ele havia sido recentemente desativado por uma das plataformas de entrega de comida para a qual trabalhava e queria responder. O clipe viral se espalhou pelas redes sociais e por grupos de entregadores e, em pouco tempo, uma greve selvagem visando todas as plataformas de entrega de comida em operação na cidade estava prestes a acontecer. Suas demandas centrais eram: aumento das remunerações, fim das desativações injustas de contas e apoio das diversas plataformas de entrega para trabalhadores que contraíram coronavírus.

Em São Paulo, a Vice informou uma participação histórica de 5.000 entregadores de plataformas. Os grevistas se reuniram em enormes comboios e bloquearam pontes e shoppings para interromper a circulação de mercadorias e pessoas pela cidade. Notícias da iminente greve também se espalharam para outros motoboys que trabalham para as mesmas plataformas em todo o continente, com paralisações no dia 1º de julho sendo relatadas no México, Chile, Argentina e Equador.

Essa é uma história que guarda profundas semelhanças com as lutas dentro do capitalismo de plataforma que têm ocorrido na Europa. Há um certo arco narrativo que se repete continuamente: uma mudança nos pagamentos ou nas condições de trabalho levam alguns trabalhadores à decisão de que já estão fartos. Eles começam a catalisar um processo mais amplo de mobilização. Segue-se uma rápida auto-organização por meio dos grupos de conversa criptografados, e é feita uma decisão de tomar ação direta contra a plataforma, geralmente entrando em greve.

A natureza informal dessa ação significa que sindicatos e partidos são amplamente evitados quando a luta aflora, e as expressões políticas que emergem da greve variam em tom do revolucionário ao reacionário. Por causa da abrangência transnacional das plataformas para as quais trabalham e das condições profundamente semelhantes entre as fronteiras nacionais, esses trabalhadores auto-organizados muitas vezes acabam fazendo conexões transnacionais com trabalhadores em outras cidades. Seus grupos de conversa se expandem do intra-metropolitano para o intra-continental.

As próprias greves são caracterizadas por bloqueios e ações diretas disruptivas nas ruas da cidade, e as reinvidicações expressas por meio delas giram em torno de ambas demandas por flexibilidade do autônomo e pela segurança do trabalhador. E, infelizmente, assim que essas instâncias de militância surgem, elas começam a se deteriorar à medida que os processos de auto-organização que as produziram se desintegram e não conseguem encontrar uma forma durável. Foi exatamente o que aconteceu em São Paulo, com uma tentativa de greve em 25 de julho contando com níveis de participação significativamente menores.

Existem, é claro, diferenças contextuais. O trabalho nas plataformas no sul global parece menos o produto final de um rápido colapso na relação de emprego formal e mais uma ampliação de uma esfera já em expansão de trabalho informal. Mas as dimensões fundamentais da luta são notavelmente semelhantes mesmo em contextos nacionais muito diferentes. Existe uma experiência transicional compartilhada de trabalho e luta entre motoboys no Brasil e entregadores nas ruas de Londres, Bristol e Manchester. Como sempre, o desafio enfrentado pelo movimento dos trabalhadores de plataformas é como transformar essas lutas de incidentes pontuais em uma campanha consistente.

O futuro do trabalho será definido por este problema: como transformar insurreições contra o poder das plataformas em um movimento dos trabalhadores voltado diretamente ao próprio modo de produção.

No Reino Unido, o movimento dos trabalhadores de plataformas diminuiu de tamanho desde seu pico em 2018. Mas as lutas continuam: ao longo de setembro, os trabalhadores organizados da Deliveroo, juntamente ao IWGB em York, fizeram piquetes contínuos nas lanchonetes da rede Five Guys para protestar contra o tempo excessivo de espera. Agora, a Deliveroo anunciou sua intenção de “contratar” mais 15.000 trabalhadores somente no Reino Unido – o que significa que o número de trabalhadores da Deliveroo terá dobrado somente em 2020, de 25.000 para 50.000. Podemos esperar que o segmento de nosso novo excedente pandêmico – os trabalhadores de cuidados e comércio expulsos dos centros das cidades – se verá absorvido pelo circuito em expansão do capital de plataforma. Mas para as plataformas, como os motoboys de São Paulo mostraram, o recrutamento não é um processo isento de riscos.

À medida que a proporção da classe trabalhadora posta para trabalhar em plataformas continua a se expandir, os padrões de mobilização nesse setor antes marginal continuam a crescer em importância. Mas a impermanência das estruturas orgânicas desenvolvidas pelos entregadores durante greves e conflitos é uma barreira significativa para eles, desempenhando um papel central em um renascimento mais amplo do movimento dos trabalhadores.

Callum Cant é o autor de Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy.

Posted in geografiaTagged alimentação, economia, entregadores, greve, pandemia, plataformas, São Paulo, tradução

wave_ Molchat Doma – Судно | Bielorússia

Posted on 24/05/20 - 27/07/20 by jlxtl

Confinado em um quarto austero, “desconfortável para viver mas aconchegante para morrer”, alguém flerta com a morte e por ela é rejeitada. O descompasso entre a melodia quase dançante e o vocal-letra mórbido se encaixa bem com os tempos de pandemia; um presságio para uma música lançada no final de 2019?

Ainda que não gostem de serem confundidos com os russos, o Belarus (“Rússia branca”) espelha diametralmente seu vizinho: camufla uma autocracia personalista e alimenta mitos nacionalistas, tal como a URSS no idos de Chernobyl.

Pior ainda é o temor de um geográfo brazuca, involuntariamente retido num fechamento de fronteiras para uma pandemia negada (outra contradição): mais medo do surto nas terras tropicais do que nos pântanos do leste…

Talvez seja uma provocação do Molchat Doma (Молчат Дома) cantar em russo.

Em meio à pandemia de coronavírus, mulheres participaram da “Corrida da Beleza” de 8 de março na capital Minsk para marcar o Dia Internacional da Mulher… (Vasily Fedosenko, Reuters)
Posted in synth_waveTagged geografia, pandemia, wave

tradução_ A geografia do COVID-19 e um vulnerável sistema alimentar global

Posted on 13/05/20 - 27/07/20 by jlxtl
Crianças aguardam por doação de comida em uma favela em Mumbai, Índia. (por Rajanish Kakade, 18-04-20).

No final do mês passado, quando o coronavírus continuou a se espalhar pelo mundo, o Programa Mundial de Alimentos (WPF, na sigla em inglês) alertou para uma “pandemia de fome”. Com os isolamentos e bloqueios restringindo a renda dos pobres e interrupções na cadeia de suprimentos impedindo que os alimentos cheguem aos consumidores, a fome e a desnutrição relacionadas à pandemia podem eventualmente levar mais vidas do que a própria doença. Compreender a geografia da pandemia e a vulnerabilidade de diferentes sistemas alimentares é fundamental para uma resposta bem informada.

Segundo o Programa Mundial de Alimentos, existem agora 821 milhões de pessoas no mundo que dormem famintas todas as noites, e mais 135 milhões enfrentam níveis críticos de fome ou inanição. Esse último número pode dobrar para quase 265 milhões no final do ano por causa do COVID-19.

Embora a fome global tenha diminuído nas últimas décadas, a tendência se reverteu alguns anos atrás, quando os níveis de insegurança alimentar começaram a subir novamente, com conflitos militares em muitas regiões e recentes infestações de gafanhotos na África Oriental sendo alguns dos principais fatores. Como tal, os problemas de segurança alimentar relacionados ao coronavírus estão no topo das tendências mundiais já preocupantes.

Ao avaliar os impactos do COVID-19 na segurança alimentar global, é importante considerar como a pandemia está afetando a produção e distribuição de alimentos, bem como a capacidade das pessoas de comprar ou adquirir alimentos. Além disso, líderes e políticos precisam entender o padrão espacial da pandemia e a vulnerabilidade de diferentes sistemas alimentares.

A pandemia de COVID-19 não tem se propagado pelo planeta de maneira uniforme, como tinta fresca envolvendo uma bola. Em vez disso, se espalhou desde suas origens em Wuhan, na China, para outros grandes centros urbanos bem conectados do mundo, e daí para cidades menores e finalmente para áreas rurais — um padrão conhecido como difusão hierárquica. O que isso significa é que o mundo não está enfrentando uma grande e uniforme pandemia, mas uma série contínua de surtos interconectados e espacialmente diferenciados, com diferentes inícios e dinâmicas.

Isso também significa que os moradores das cidades atingidas primeiro, geralmente conectadas globalmente e relativamente ricas, podem enfrentar as dificuldades econômicas e os problemas alimentares associados à doença de maneiras diferentes das afetadas posteriormente. Essas diferenças persistem porque as conseqüências para a segurança alimentar provocadas pela doença são condicionadas pelos sistemas sociais, econômicos e alimentares nas quais estão operando. Isso não significa necessariamente que as regiões mais ricas ou mais industrializadas estão em melhor situação, apenas que suas vulnerabilidades são diferentes.

De um modo geral, é mais provável que os países mais ricos tenham problemas com a produção de alimentos por conta da natureza de suas cadeias de suprimentos, que são complexas e concentradas. Enquanto isso, os países de baixa renda provavelmente terão problemas com o acesso a alimentos, devido às suas fracas redes de segurança social.

Produção de alimentos

Impactos no suprimento de alimentos variam de acordo com o tipo de alimento. O ano passado foi um bom ano de colheita para a maioria dos principais grãos do mundo, e os estoques são relativamente abundantes. O processamento e transporte de grãos é também relativamente menos trabalhoso do que de outros tipos de alimentos. Assim, não se espera que a escassez de grãos seja um problema nos próximos meses, a menos que alguns dos principais países produtores de grãos optem por estocar suas produções. Essa é uma boa notícia para os países importadores de grãos, incluindo muitos de baixa renda da África.

No entanto, o vírus está começando a criar problemas para a produção de frutas, legumes e carne em algumas áreas do mundo, principalmente em países de alta renda. Aqui (o autor refere-se aos Estados Unidos), grande parte da produção de frutas e vegetais é realizada pelo trabalho de imigrantes alojados em fazendas em locais próximos, tornando-os particularmente suscetíveis a surtos de COVID-19. As fábricas de processamento de carne também são especialmente vulneráveis ao coronavírus, com várias fábricas nos Estados Unidos e no Canadá sendo forçadas a fechar recentemente. A concentração corporativa na indústria de carnes ampliou o problema, porque agora existem menos fábricas, mas significativamente maiores, com trabalhadores muito adensados. Centenas de trabalhadores foram infectados em algumas instalações, levando a perdas significativas na produção de alimentos.

Os impactos do COVID-19 na produção de alimentos em países de baixa renda diferem dos de países de alta renda. A produção para consumo doméstico e para os mercados locais ainda é difundida em algumas áreas tropicais do mundo. Com cadeias de suprimentos mais curtas e produção mais diversificada, há menos chance de algo dar errado. Uma forma dessa produção mais localizada é a agricultura urbana e periurbana de pequena escala, que abastece muitas cidades dos países mais pobres com boa parte de seus produtos frescos.

As mulheres desempenham um papel central como produtoras de alimentos em muitas áreas dos trópicos, representando 70% dos alimentos produzidos na África, por exemplo. Mas as mulheres também são as principais prestadoras de cuidados em muitas dessas sociedades, o que significa que elas podem ser mais propensas a serem expostas a membros da família doentes com o COVID-19, com implicações em cadeia na produção de alimentos, cuidados infantis e nutrição infantil.

Acesso a alimentos

Os bloqueios relacionados ao COVID-19 têm sido particularmente desafiadores para os mais pobres nas áreas urbanas dos países de baixa renda, porque essas populações dependem do trabalho informal e intermitente para ganhar o dinheiro necessário para comprar comida. Além disso, muitos países de baixa renda não são capazes de fornecer uma rede de segurança social robusta às suas populações em termos de substituição de renda ou fornecimento direto de alimentos durante um bloqueio.

Isso tem levado à migração reversa, ou migração urbano-rural, em alguns países como a Índia, quando trabalhadores desempregados voltam para áreas rurais em busca de melhor acesso a alimentos. Embora isso faça sentido para os indivíduos, esses grandes movimentos de pessoas também podem espalhar a doença nas áreas rurais.

Muitas famílias em países de baixa renda também estão enfrentando declínios na renda de remessas de familiares que vivem no exterior e não podem mais trabalhar devido a bloqueios em países mais ricos. Isso restringe ainda mais o orçamento alimentar dessas famílias.

O caminho a seguir

Para enfrentar tanto os problemas de produção quanto os de acesso a alimentos, o mundo precisa de um sistema alimentar mais descentralizado. A concentração corporativa, particularmente nos países mais ricos, apenas tornou o sistema alimentar mais vulnerável a surtos de pragas e doenças. Grandes fazendas que usam métodos industriais para cultivar uma gama restrita de culturas são menos adaptáveis às mudanças nas condições do mercado. Elas também envolvem densas forças de trabalho e campos monoculturais, ambos mais suscetíveis a doenças. Além disso, a tendência para menos e maiores instalações de processamento de alimentos produz gargalos no sistema, pois mesmo uma falha em uma única fábrica pode levar a uma perda significativa na produção. As políticas que incentivam a desconcentração das indústrias de alimentos tornariam os sistemas alimentares menos vulneráveis a doenças, com o benefício adicional de que uma produção alimentar mais localizada é melhor para o meio ambiente.

Nos países de baixa renda, apoiadores e seus parceiros do setor privado também devem interromper seu esforço incansável para integrar os pequenos agricultores no sistema alimentar global. Aqui (Estados Unidos), pequenos agricultores que produzem amplamente para consumo doméstico e local estão sendo incentivados a usar mais insumos comprados — como sementes, fertilizantes e pesticidas — e a produzir para mercados regionais e globais. Isso não tem levado a melhorias na segurança alimentar e nutricional das famílias envolvidas e tornou a produção de alimentos mais arriscada devido ao aumento das chances de endividamento e maior exposição às flutuações dos preços de mercado.

Por pior que possa parecer agora, os efeitos negativos do COVID-19 na segurança alimentar global só se aprofundarão à medida que a doença se espalhar ainda mais nos países de baixa renda. Esses impactos agravarão os problemas alimentares já existentes, exacerbando a fome de maneiras que não vemos há várias décadas. A comunidade global deve responder rápida e generosamente para enfrentar a maré crescente da fome global.

Com o nacionalismo econômico e a xenofobia em ascensão em alguns países mais ricos, será difícil conseguir apoio político para uma assistência generosa e uma abordagem multilateral para combater a fome global. Mas se os políticos não são influenciados pelo argumento moral de que o direito à alimentação é um direito humano fundamental, certamente devem entender que é do seu próprio interesse defender uma maior segurança alimentar global. Afinal, a fome generalizada gera instabilidade e conflito, o que não beneficia ninguém.

traduzido livremente

publicado por William G. Moseley em World Politics Review, 12–05–20
https://www.worldpoliticsreview.com/articles/28754/the-geography-of-covid-19-and-a-vulnerable-global-food-system

William G. Moseley é professor de geografia e diretor do ‘Program for Food, Agriculture & Society’, na Macalester College em Saint Paul, Minnesota.

Posted in geografiaTagged alimentação, descentralização, fome, geografia, pandemia, tradução

tradução_ Dez premissas para uma pandemia

Posted on 11/05/20 - 22/07/20 by jlxtl

 

1. Uma pandemia não é uma coleção de vírus, mas sim uma relação social entre pessoas, mediada por vírus.

Nada é inevitável, imprescindível ou imutável na pandemia de coronavírus que se desenvolve em todos os lugares à nossa volta, simplesmente porque a pandemia é social. As intermináveis mensagens e anúncios que nos pedem para ajudar a “achatar a curva” são pelo menos suficientes para deixar claro que as consequências históricas e os custos humanos da pandemia dependem inteiramente das maneiras que escolhemos viver em relação a ela. Como a pandemia não é algo que simplesmente acontece conosco, mas sim algo do qual participamos, um primeiro passo à frente nesses tempos é recusar restringir nosso pensamento sobre como cada uma de nossas vidas individuais pode ser particularmente afetada pelo vírus e começar a contemplar o potencial que compartilhamos coletivamente para mudar o curso da pandemia e também para moldar a nova sociedade que emerge dela.

2. No mínimo, a crescente suspensão de normas e leis sociais, econômicas e políticas oferece a cada um de nós uma oportunidade única de questionar o mundo pré-pandêmico com o qual todos estávamos acostumados a viver.

Qual é o valor do trabalho? Como podemos alocar recursos de maneira diferente se não precisarmos considerar o preço? A saúde privatizada é defensável? As prisões são realmente necessárias? Ao testemunharmos o cancelamento de pagamentos de serviços públicos, hipotecas e aluguéis, a aquisição pública de sistemas de saúde privados, a cessação de prisões por crimes de baixo nível e os pedidos de cancelamento de todas as dívidas, o que mais poderíamos colocar em questão e, talvez mais importante, imaginar tomar o lugar deles? Se os que estão no poder estão tão dispostos a violar normas e leis sociais, econômicas e políticas, no interesse de defender o mundo que controlam, então devemos estar igualmente dispostos a modificá-las e espalhar a imaginação de algo diferente. Nesse curto espaço de tempo, já podemos ver que a única coisa verdadeiramente certa na pandemia é que nada mais será o mesmo.

3. Como os estados-nação se mostram indispostos e/ou incapazes de sustentar a vida, nossa prioridade imediata e urgente deve ser a de organizar ajuda mútua, solidariedade e cuidado, usando os meios necessários.

Realmente não demorou muito tempo para surgirem os espectros do darwinismo pandêmico e do malthusianismo viral, encontrando apoio em políticos de todo o mundo que dizem a seus cidadãos que estão por si sós. Se o Estado e a economia de mercado se mostram incapazes de fornecer as diversas formas de cuidado das quais toda a vida depende, devemos encontrar maneiras de prestar esse cuidado sem se preocupar com quem é o dono ou se é legal. Nesse sentido, a luta para defender a vida na pandemia, às vezes, necessariamente toma forma de uma luta direta contra a lógica do capital, a violência da lei e a abstração do preço. Devemos aprender sobre nossas próprias necessidades e as necessidades daqueles de quem somos capazes de cuidar, encontrar maneiras de produzir, expropriar e distribuir bens que satisfaçam as necessidades das comunidades interconectadas e interdependentes e estarmos dispostos a simplesmente tomar aquilo que for necessário sempre que nos for negado.

4. Como as economias de mercado do capitalismo fracassam a nós em todos os aspectos, devemos ousar imaginar maneiras de organizar a vida social além da lógica do preço, da concorrência e do lucro.

Organizar uma sociedade baseada em satisfazer as necessidades de todos, em vez de defender a riqueza de poucos, não é simplesmente um ideal na pandemia, mas uma necessidade prática e popular. À medida que esse novo senso comum continue a proliferar e se firmar, precisamos começar a reorganizar materialmente a sociedade nessa base, garantindo que as pessoas obtenham o que precisam primeiro e nunca se preocupando com o lucro. Quaisquer novas práticas de cuidado que surgirem serão imediatamente desafiadas pelo poder logístico e de infra-estrutura do capitalismo digital, que já está aproveitando a pandemia como um meio de conquistar e articular o que resta de uma economia global em colapso. Se a Amazon, que já contrata milhares de novos trabalhadores para acompanhar a demanda vertiginosa, se torna o meio em que as pessoas confiam para sobreviver à pandemia, então nosso mundo pós-pandemia se tornará cada vez mais indistinguível da exploração, desigualdade e precariedade que hoje definem o modelo organizacional da Amazon. Resumidamente, se não conseguirmos quebrar a lógica da oferta e demanda impulsionada pelo mercado, do preço e do lucro, isso pode acabar simplesmente nos quebrando.

5. Nossas redes de cuidado e solidariedade necessariamente devem começar pelas especificidades e imediatidades das situações em que vivemos, mas rapidamente devem multiplicar seus vínculos com comunidades difusas e diversas.

Nenhuma vida vive verdadeiramente sozinha, e nenhum ato de individuação ou privação pode alterar o fato de que toda vida depende constitutivamente de inúmeras outras vidas. Como tal, cuidar verdadeiramente de nós mesmos e daqueles com quem compartilhamos laços íntimos exige efetivamente a assistência para todos. Nos próximos meses, devemos praticar de maneira inventiva e imaginativa o distanciamento social de forma que cultivem e proliferem, e não diminuam, a solidariedade social. Se devemos começar na prática organizando o atendimento àqueles que já são próximos e íntimos – nós mesmos, nossas famílias, amigos, vizinhos e entes queridos – então parte desse esforço implica em expandir continuamente a organização e a coordenação do atendimento em qualquer escala a todos que necessitarem. Esses modos de cuidado inclusivo e aberto devem escapar da lógica do Estado e do mercado, constituindo-se com base nas diversas precaridades e interdependências.

6. Cuidar e agir em solidariedade uns com os outros dentro e fora da pandemia exigirá a constituição e defesa de novas formas de comunidades.

Enquanto lutamos para organizar os cuidados, o capitalismo pode muito bem confiar em toda a nossa compaixão e solidariedade para sobreviver à pandemia antes de retornar com força total e mergulhar todos nós em estados de precariedade ainda mais intensos, em formas de trabalho ainda mais indiferentes e em dívidas ainda mais profundas. Embora essas novas formas dependam das maneiras pelas quais somos capazes de agir em solidariedade uns com os outros, praticando bondade, generosidade, compaixão e coragem, se essas solidariedades não forem constituídas em novos tipos de comunidades que tornem obsoletos o capitalismo e o Estado, elas não serão capazes de suportar as exigências da pandemia nem resistir a medidas inevitáveis ​​destinadas a conquistar e capturar o que se segue à pandemia. Em outras palavras, se nossa capacidade de cuidar um do outro falha em ser assentada em formas qualitativamente diferentes, elas podem muito bem ser reintegradas em novas expressões de privação, desapropriação e precaritização em quaisquer novos sistemas jurídicos e econômicos que possam tentar estabelecer a si mesmos.

7. Cuidar um do outro envolverá igualmente oposição e luta contra aqueles que pretendem fortalecer as formas de dominação já existentes nas turbulências e incertezas da pandemia.

Enquanto os trabalhadores do hospital ainda lutam para obter equipamento de proteção suficiente, novas imagens já circulam de agentes de imigração equipados com novas máscaras respiratórias que prendem migrantes sem documentos. As xenofobias são ampliadas, os programas de assistência social são cortados e empresas assinam novos contratos com o Estado para implementar tecnologias de reconhecimento facial e rastreamento de celulares. Não devemos subestimar as novas crueldades que podem surgir nestes tempos, atacando comunidades que já não podem mais se defender ou protestar nas ruas, muito menos se reunirem. Que novos tipos de solidariedade e luta poderíamos inventar para combater as novas intensidades, práticas e violências que certamente surgirão? Como podemos manter distâncias um dos outros e ainda assim encontrar maneiras de agir de forma decisiva e coordenada em conjunto?

8. A pandemia, sendo um fenômeno que afeta diferentemente todo o planeta de uma só vez, deve forçar todos nós a viver nossas vidas além da lógica das fronteiras e nações.

As autoridades de saúde observaram há muito tempo que os vírus não respeitam fronteiras. Nós também não devemos. Muito do que atualmente ameaça nossas vidas – mudança climática, capital financeiro, pandemia de coronavírus – agora é expresso em escala planetária. Temos pouca esperança de defender a vida em qualquer lugar se formos incapazes de agir em conjunto com a vida em todos os lugares, reconhecendo a dignidade que é comum a toda a vida, por um lado, e as desigualdades materiais que continuam a impactar de maneira diferente a forma como a vida é vivida, no outro. A violência da pandemia será expressa de maneira diferenciada, em diferentes intensidades e de formas diferentes em corpos historicamente diferenciados, e nossos modos de viver e de organizar não apenas terão que dar conta disso, mas terão que se organizar exatamente nesses termos. Defender a vida na cidade de Nova York significará algo diferente de defendê-la na Cidade do México, Ramallah ou Hong Kong, mas essas lutas devem encontrar maneiras de ressoar e reverberar entre si através das fronteiras, continentes e oceanos, assim como o capital e as pandemias são capazes.

9. Como a vida na pandemia é do jeito que é, a vida na pandemia não permanecerá do jeito que é.

A pandemia é um processo histórico mundial, deixando nada na Terra inalterado e agindo como uma “dobra temporal” entre um planeta antes/depois. Embora não possamos mudar o que aconteceu antes da pandemia, devemos aprender com o passado como um meio de dar vida, sustentar e defender a possibilidade de futuros diferentes. Diversas histórias de luta contra várias formas de opressão e dominação devem informar as maneiras pelas quais nós mesmos continuamos lutando, mesmo que as novas lutas que surjam no presente pandêmico não possam se assemelhar formalmente às maneiras de lutar com as quais estamos acostumados. O passado nunca é resolvido e todos os eventos passados ​​sempre podem significar algo novo nas maneiras como aprendemos e nos baseamos neles. Nesse sentido, como as lutas do passado contra o sexismo, o racismo, o fascismo e o capitalismo podem informar as lutas da pandemia? A resistência é, até certo ponto, sempre um esforço fundamentalmente especulativo, uma aposta coletiva de que algo pode ser possível antes que essa possibilidade seja realizada. Agora é a hora da imaginação, invenção e experimentação, aproveitando cada uma delas como um meio de produzir novos tipos de conhecimento sobre nossa situação e novos modos de luta dentro dela.

10. Devemos coletivamente, com coragem e compaixão, decidir que novas maneiras de viver queremos na pandemia e nos tempos que se seguem, ou então será decidido para nós.

As maneiras pelas quais a vida humana está atualmente ameaçada em escala planetária devem levar todos a considerar não apenas o valor genérico da vida, mas também o valor de formas distintas de vida e modos de vida. O valor da vida em resumo faz pouco para ajudar a informar as maneiras pelas quais podemos escolher viver nossas próprias vidas, enquanto imaginar e sonhar com que tipo de vida vale a pena viver pode esclarecer tudo. A pandemia oferece a todos a oportunidade de participar de um tipo de experiência estética crítica, permitindo não apenas ver as vidas como elas são, mas também ver como as vidas passaram a ser vividas de uma maneira específica e, assim, como as vidas poderiam viver de outra maneira. Levar a sério essa oportunidade requer nada menos que um abandono total de tudo o que governou e organizou nossas vidas até este ponto. Somente então seremos capazes de iniciar o processo interminável de aprender a viver, pensar, cuidar, agir, amar, lutar e construir novas vidas e modos de viver juntos além da lógica da pandemia e do mundo que a precedeu.

 

por Ian Alan Paul (https://www.ianalanpaul.com/ten-premises-for-a-pandemic/)
traduzido livremente

Posted in anarquiaTagged ajuda mútua, anarquia, pandemia, tradução

Recent Posts

  • cotidiano-cyberpunk #1
  • tradução_ A linha de frente da luta contra o capitalismo de plataforma está em São Paulo
  • tradução_ Os Coletivos na Espanha Revolucionária
  • wave_ Molchat Doma – Судно | Bielorússia
  • tradução_ A geografia do COVID-19 e um vulnerável sistema alimentar global

Tags

ajuda mútua alimentação anarquia coletivos cotidiano cyberpunk descentralização economia entregadores fome geografia greve pandemia plataformas revolução espanhola São Paulo tradução wave

Categories

  • anarquia
  • cyberpunk
  • geografia
  • synth_wave

Archives

  • June 2021
  • October 2020
  • July 2020
  • May 2020
Proudly powered by WordPress | Theme: micro, developed by DevriX.